«O objectivo deste texto é perpetuar, da forma escrita, a luta dos Arsenalistas iniciada no dia 14 de Julho de 2009, porque é digna de ser contada e recontada a todas as gerações, actuais e vindouras.
OUVEM-SE AS BOTAS, OUVEM-SE AS VOZES...
A última grande luta do Arsenal do Alfeite
A última grande luta do Arsenal do Alfeite
- Anda daí, o pessoal está a manifestar-se em frente à administração!
Uma força enorme fez-me obedecer sem hesitar, nunca a vontade esteve tão unida com a
razão. Havia que dizer NÃO! àquilo que nos queriam fazer.
O que vinha aí era mau de mais, anunciava-se o fim de um amor que parecia eterno, separação imposta pela força do poder podre que há já muito tempo se separou do superior interesse do país e se aliou aos interesses dos senhores do dinheiro.
Era um facto: o Arsenal do Alfeite, ancestral estaleiro de construção, reparação e manutenção dos navios da Armada, garante da sua operacionalidade, iria ser extinto como organismo público e entregue ao domínio privado, cedendo-lhe o seu saber único e totalmente com dinheiro dos contribuintes. A data de execução tinha sido fixada em decreto-lei para trinta e um de agosto de dois mil e nove.
Uma das coisas que mais nos inquietava era terem dito a muitos colegas nossos que não
contavam com eles na nova empresa, sem qualquer critério de escolha, sem qualquer fundamento, sem qualquer documento escrito. Apenas diziam: não conto consigo... que desumanidade, ao que isto chegou, dizia-se dentro e fora do estaleiro.
Aos que disseram que contavam com eles, propuseram um acordo com cláusulas incríveis,
em que se assinasse o trabalhador não estaria a vender a sua força de trabalho, mas sim todo o seu tempo, o seu espaço, a sua vontade, toda a sua vida.
Para a larga maioria, foi preciso terem sido confrontados em responder de vez a esse acordo para descerem à terra.
Foi como um interruptor que lhes acendeu a realidade e que despertou um vulcão que muitos pensavam para sempre estar adormecido...
Deixei o edifício da minha divisão, já meio deserto, e sob o tórrido calor de um princípio de
tarde de verão, pus-me a caminho da administração. Ao meu lado esquerdo, paralela ao edifício
onde eu trabalhava, alongava-se a doca seca do estaleiro, preenchida pela Vasto da Gama, seminua, abandonada, envolta apenas num silêncio enorme que me sussurrava baixinho: - vai, já estás atrasado...
Dobrei a oficina de pintura e tomei a longa recta que terminava nos portões do estaleiro.
A meio da rua, caminhando na minha direcção, via-se uma multidão que se agitava em tons de azul, soltando bramidos imperceptíveis ao longe, com certeza eram palavras de ordem pela defesa dos nossos postos de trabalho.
Juntei-me a eles entre a antiga oficina de serralharia e montagem, ou simplesmente máquinas, e os serralheiros civis.
Se antes eu já era um deles em alma e pensamento, tornara-me um deles em corpo também.
Entrámos na serralharia determinados, unidos, emocionados, revoltados, convictos do que
queríamos, invadidos por um sentimento de união e de força colectiva capaz de mover montanhas, de atravessar rios e oceanos, nada nos faria parar!
- Andem daí! Vamos embora! – gritámos para os nossos camaradas da serralharia civil.
Vieram de imediato. O mesmo aconteceu na ferraria, carpintaria, pintura, manutenção, construção naval. A adesão parecia total. A coluna agigantava-se em comprimento e em voz, serpenteando pelas ruas do estaleiro.
Seguiu-se a escola de formação, a divisão de armamento, depois o refeitório, a electricidade, a galvanoplastia. Virámos para as traseiras da divisão de mecânica, onde sobressaiam as grandes oficinas das máquinas e da caldeiraria de tubos.
Depois virámos para o lado direito, passando pela contabilidade, sala de desenho, informática, aproximávamo-nos do edifício da administração.
Por onde passámos, chamámos os nossos camaradas para a luta. Tratava-se da luta das nossas
vidas, pela vida do nosso Arsenal. Todos perceberam isso e se envolveram num dos mais belos
movimentos da história da luta da classe trabalhadora.
Éramos cerca de um milhar de trabalhadores em fúria, por nos ter sido dito “não contamos consigo”, por nos ter sido imposto um acordo cessável a trinta dias sem justa causa, tendo como alternativa a precariedade da mobilidade especial.
A certeza de um futuro incerto. Mas que forma de reconhecer e premiar aqueles que desde sempre souberam garantir a operacionalidade dos navios da Marinha de Guerra Portuguesa!
Ocorria-nos um sentimento de perda irreparável, por isso nada mais tínhamos a perder. E o
movimento crescia, crescia! A exaltação também. A nossa absoluta convicção na justeza do protesto aliou-se ao desespero e à raiva há muito tempo contida, gerando um fenómeno imparável, imprevisível, incontrolável.
Em plena base militar, o poder estava nas ruas, na luta dos trabalhadores civis do Arsenal do Alfeite!
Chegámos ao edifício da administração e deu-se o inesperado.
Muitas dezenas de trabalhadores em fúria irromperam ruidosamente pela porta lateral do edifício, invadindo o seu interior. Da rua conseguia-se ouvir a correria nos corredores, o gritar de palavras de ordem, o estilhaçar de vidros pela trepidação à passagem agitada dos invasores.
O ambiente era surreal, assustador, mas ao mesmo tempo belo e pleno de simbolismo.
Concentrámo-nos diante da entrada principal da administração, por onde saíram os que tinham invadido o edifício, já acompanhados pelo pessoal que ali trabalhava.
O nosso objectivo era manifestar de forma bem vincada o repúdio pela situação e rejeitar o assinar de qualquer novo acordo ou contrato, uma vez que já tínhamos assinado um quando fomos admitidos no Arsenal do Alfeite. Acima de tudo, que suspendessem o processo de extinção do Arsenal e garantissem o posto de trabalho a todos os arsenalistas.
Cerca de um milhar de trabalhadores gritava em uníssono “não assinamos”, “trabalho com direitos sim, desemprego não” ou “a luta continua”. Não sairíamos dali enquanto a situação não fosse resolvida!
Reparei na chegada do Administrador do Arsenal do Alfeite, vindo do almoço, entrando em
passo apressado pela porta lateral do edifício.
Alguns minutos depois enfrentou a multidão, deu a cara, como bom exemplo da velha guarda, embora tenha sido vaiado pela grande maioria dos que ali estavam.
Os membros da comissão de trabalhadores e da comissão sindical, que entretanto tentavam refrear um pouco os ânimos sem grande sucesso, facultaram-lhe um megafone para que mais facilmente pudesse ser ouvido por todos. Demasiado acalorado, tirou a gravata e procurou fazer-se ouvir perante o burburinho que ali estava instalado :
- Um momento, um momento.
O pessoal acalmou-se um bocado. O Administrador prosseguiu:
- Eu não vim para o Arsenal do Alfeite há dois dias! Nem há dois meses! Nem há dois anos! Eu conheço o Arsenal do Alfeite desde mil novecentos e setenta e nove! Portanto, eu sei muito bem o que é o Arsenal do Alfeite – fez uma breve pausa, depois prosseguiu:
- Neste momento, quem é o Administrador do Arsenal do Alfeite sou eu. Eu tenho acesso ao
Secretário de Estado. Eu tenho acesso ao chefe da Marinha. Relativamente a esta questão que vocês estão a pôr... eu comprometo-me a ir tratar do assunto, em ir falar com a administração da nova empresa, em ir falar com o Secretário de Estado, no sentido de ver se as coisas podem ser tratadas de outra maneira – concluiu.
Ouviram-se mais aplausos do que vaias, as suas palavras caíram bem entre grande parte dos
trabalhadores. Porém, apesar de conhecer o Arsenal do Alfeite há trinta anos, a sua visão do
estaleiro chocou várias vezes com aspectos da cultura e da identidade arsenalista, e nem todos se tinham esquecido de que ele sempre se manifestou a favor da passagem do Arsenal do Alfeite a sociedade anónima, admitindo a possibilidade de se reduzir pessoal.
Outro episódio houve em que, num plenário convocado por si, a maioria dos presentes riu à gargalhada quando afirmou que uma das coisas que o Arsenal do Alfeite mais necessitava era de aumentar o número de engenheiros.
Sentindo a sua classe ofendida, mal terminou o plenário enviou uma mensagem de solidariedade a todos os licenciados, expressando-lhes o seu apoio contra o que apelidou de "basismo empedernido”, referindo-se claramente a quem se riu da sua afirmação.
Muito boa gente com responsabilidades nunca deu ou nunca quis dar real importância aos executantes, aos seus saberes e conhecimentos adquiridos, à sua invulgar capacidade de resolução de problemas em oficina e a bordo.
Ao longo dos setenta anos de história do Arsenal do Alfeite, foi esse o segredo e a chave para o bem sucedido cumprimento da missão que foi confiada ao Arsenal. Porque é nas oficinas e a
bordo que se fazem as coisas.
Foi nos seus anos como Administrador do Arsenal do Alfeite que se iniciou, operou e concluiu o processo de transformação do organismo público Arsenal do Alfeite em sociedade anónima, mas talvez o processo não tenha decorrido conforme tinha idealizado, talvez tivesse sido até enganado, só ele sabe.
Certo é que, naquela tarde bem quente de Julho, ele parecia não estar contra nós. Porém, a sua intervenção nem sequer beliscou o fervor descontente da multidão.
Ninguém arredou pé. Estávamos todos juntos e determinados como nunca se tinha visto, volta e meia gritando bem alto:
- Não assinamos!
Numa posição privilegiada no andar superior do edifício da direcção técnica, paralelo ao da
administração, alguns chefes de divisão assistiam divertidos ao protesto e, segundo alguns
testemunhos, tiravam fotografias e filmavam.
Corria pelo Arsenal que lhes haviam prometido carros de empresa, cartões de abastecimento gratuito de combustível e outros incentivos, para que a futura administração já os tivesse na mão.
Apesar dos boatos serem uma característica arsenalista, na verdade eles falavam e agiam como se já estivessem a trabalhar para a nova empresa, pressionando incrivelmente as pessoas no sentido de estas assinarem pela futura Arsenal SA.
Outros sentiram-se com um poder aparentemente ilimitado e demonstraram o pior que há nos seres humanos quando acontecem situações semelhantes.
Eram também estas razões que alimentavam o sentimento de revolta de todos nós, e naquela tarde esse sentimento atingiu uma magnitude tremenda, como tremendo era o asco perante aqueles que nos estavam a fazer mal ou a gozar com a nossa dignidade.
Percebendo isso, e perante o olhar ferido de raiva e a atenção de cada vez mais pessoal apontando-lhes o indicador, eles apressaram-se em cerrar as cortinas, apagar as luzes e zarpar dali para fora.
Foi melhor assim, para eles e para nós.
Subitamente, vindo do refeitório em direcção aos portões do estaleiro, um carro escuro de gama alta foi travado pela barreira humana que ocupava totalmente a rua. A maioria reconheceu o condutor como sendo um antigo administrador do Arsenal do Alfeite... a reacção foi colectiva e automática:
- Não passa!
E não passou. Mais tarde surgiram outros carros parecidos, sempre transportando velhas figuras conhecidas dos arsenalistas, todas elas do topo da hierarquia do estaleiro.
Coincidência das coincidências, nesse dia tinha havido um almoço especial, muito pouco divulgado, um banquete em que terão participado alguns antigos, actuais e futuros directores e administradores do Arsenal.
Algumas viaturas ficaram cerca de duas horas bloqueadas pelo protesto, outras apenas alguns
minutos, mas não passaram! Não entravam nem saíam carros! Quem quisesse, era livre de sair ou entrar, mas pelo seu próprio pé.
A nossa posição estava bem vincada e era unânime. Não sairíamos dali enquanto não tivéssemos garantias de que a situação iria mudar. O ambiente nunca deixou de ser tenso, mas
tornou-se estável.
Uns procuraram uma sombra para se abrigarem do Sol, outros sentaram-se nos vários espaços relvados diante do edifício da administração, mas a maioria estava de pé, bloqueando a passagem dos carros, manifestando o seu desagrado, conversando uns com os outros, trocando ideias, formando correntes de opinião.
O Administrador andava de um lado para o outro, desdobrando-se em esforços para deixarmos sair os carros, dizia que aquelas pessoas nada tinham a ver com a situação.
Bem, se virmos bem, muitos dos que tiveram grandes responsabilidades no Arsenal do Alfeite acabaram por ter a sua quota parte de culpa pela situação a que o estaleiro chegou...
Houve um carro que quase conseguiu sair, tendo sido travado mesmo junto aos portões por
um grupo de pessoal que se apercebeu a tempo. Um colega soldador ainda levou um toque nos
joelhos, quem viu garante que podia ter sido evitado, o ambiente aqueceu novamente...
O condutor manteve-se calmo, imperturbável, segundos depois pediu desculpa ao rapaz e o episódio acabou ali.
Quando as pessoas se esforçam para chegar a um entendimento digno, as coisas costumam correr bem. Foi o que nunca aconteceu no processo de transformação do Arsenal do Alfeite, pois os órgãos representativos dos trabalhadores do Arsenal nunca foram ouvidos durante a fase de estudo e decisão do processo.
O Administrador bem tentava que desmobilizássemos, mas não tinha qualquer controlo sobre
as pessoas. Nem ele nem os nossos órgãos representativos, visivelmente preocupados com a
situação.
A hora de saída aproximava-se e tínhamos de tomar decisões. Diante da entrada principal do
edifício da administração, no meio do espaço relvado, havia uma espécie de lago artificial, delimitado por um pequeno muro com cerca de meio metro de altura.
Esse muro serviu de palanque sempre que os órgãos representativos tinham algo para nos dizer, como era o caso. Exceptuando o pessoal que barrava solidamente a passagem de viaturas nos portões do estaleiro, todos fomos ouvir as novidades, para que depois pudéssemos tomar decisões.
O que nunca tinha acontecido em meses fora conseguido numa tarde memorável.
A comunicação social já sabia e noticiava o sucedido, apesar de não estar autorizada a entrar na Base para cobrir este tipo de situações. O Ministério da Defesa prontificou-se em receber os nossos representantes com urgência. A administração da futura Arsenal SA. aceitou reunir-se na manhã seguinte com a comissão de trabalhadores.
A luta começara a surtir efeitos.
Sabendo das novidades, decidimos desmobilizar no estaleiro e concentrarmo-nos no exterior,
junto aos portões do Laranjeiro, onde nos esperavam inúmeros órgãos de comunicação social.
Os carros puderam finalmente sair do Arsenal com normalidade. Decidimos também esperar pela reunião da manhã seguinte e, mediante a nossa análise ao resultado dessa reunião, determinaríamos qual o seguimento a dar ao movimento imparável que tínhamos iniciado.
Nos dias que se seguiram, e perante a firmeza da nossa luta, apoiada e saudada vivamente pelas duas maiores forças políticas portuguesas de esquerda, sob a vigilância atenta de grande parte da comunicação social, multiplicaram-se as reuniões com o Ministério da Defesa e com a administração da futura SA, as cedências aconteciam em todos os dias, surgiram várias versões da minuta do acordo, cada vez mais brandas e menos restritivas, com múltiplas supressões e alterações de cláusulas, apesar da continuidade daquela cláusula maldita que permitia que nos empurrassem para a mobilidade, agora a noventa dias.
Nada disto teria acontecido sem a grande jornada de luta iniciada de forma espontânea pelos
trabalhadores do Arsenal do Alfeite naquela saudosa e escaldante terça-feira, que permitiu colocar os representantes dos trabalhadores a negociar, quer com o Ministério da Defesa, quer com a administração da futura Arsenal SA.
Em catorze de Julho de mil setecentos e oitenta e nove, em Paris, heróis revolucionários
tomaram a Bastilha e escreveram uma das mais importantes páginas da história da Humanidade.
Exactamente duzentos e vinte anos depois, os trabalhadores do Arsenal do Alfeite, através da força e determinação da sua luta, provaram que, mesmo numa fase histórica de clara perda de direitos, é possível fazer ceder o monstro capitalista nas suas intenções desumanas de transformar o trabalhador cada vez mais num escravo remunerado.
Por isso, agora e sempre, e tal como deve acontecer na defesa da Liberdade e da Democracia, a luta dos trabalhadores continua, tem que continuar, todos os dias, todas as horas, em todos os momentos, em todos os lugares, na procura de um mundo socialmente mais justo e humanamente equilibrado.
Fim
José Soares, arsenalista, 7 de Agosto de 2009.
Uma força enorme fez-me obedecer sem hesitar, nunca a vontade esteve tão unida com a
razão. Havia que dizer NÃO! àquilo que nos queriam fazer.
O que vinha aí era mau de mais, anunciava-se o fim de um amor que parecia eterno, separação imposta pela força do poder podre que há já muito tempo se separou do superior interesse do país e se aliou aos interesses dos senhores do dinheiro.
Era um facto: o Arsenal do Alfeite, ancestral estaleiro de construção, reparação e manutenção dos navios da Armada, garante da sua operacionalidade, iria ser extinto como organismo público e entregue ao domínio privado, cedendo-lhe o seu saber único e totalmente com dinheiro dos contribuintes. A data de execução tinha sido fixada em decreto-lei para trinta e um de agosto de dois mil e nove.
Uma das coisas que mais nos inquietava era terem dito a muitos colegas nossos que não
contavam com eles na nova empresa, sem qualquer critério de escolha, sem qualquer fundamento, sem qualquer documento escrito. Apenas diziam: não conto consigo... que desumanidade, ao que isto chegou, dizia-se dentro e fora do estaleiro.
Aos que disseram que contavam com eles, propuseram um acordo com cláusulas incríveis,
em que se assinasse o trabalhador não estaria a vender a sua força de trabalho, mas sim todo o seu tempo, o seu espaço, a sua vontade, toda a sua vida.
Para a larga maioria, foi preciso terem sido confrontados em responder de vez a esse acordo para descerem à terra.
Foi como um interruptor que lhes acendeu a realidade e que despertou um vulcão que muitos pensavam para sempre estar adormecido...
Deixei o edifício da minha divisão, já meio deserto, e sob o tórrido calor de um princípio de
tarde de verão, pus-me a caminho da administração. Ao meu lado esquerdo, paralela ao edifício
onde eu trabalhava, alongava-se a doca seca do estaleiro, preenchida pela Vasto da Gama, seminua, abandonada, envolta apenas num silêncio enorme que me sussurrava baixinho: - vai, já estás atrasado...
Dobrei a oficina de pintura e tomei a longa recta que terminava nos portões do estaleiro.
A meio da rua, caminhando na minha direcção, via-se uma multidão que se agitava em tons de azul, soltando bramidos imperceptíveis ao longe, com certeza eram palavras de ordem pela defesa dos nossos postos de trabalho.
Juntei-me a eles entre a antiga oficina de serralharia e montagem, ou simplesmente máquinas, e os serralheiros civis.
Se antes eu já era um deles em alma e pensamento, tornara-me um deles em corpo também.
Entrámos na serralharia determinados, unidos, emocionados, revoltados, convictos do que
queríamos, invadidos por um sentimento de união e de força colectiva capaz de mover montanhas, de atravessar rios e oceanos, nada nos faria parar!
- Andem daí! Vamos embora! – gritámos para os nossos camaradas da serralharia civil.
Vieram de imediato. O mesmo aconteceu na ferraria, carpintaria, pintura, manutenção, construção naval. A adesão parecia total. A coluna agigantava-se em comprimento e em voz, serpenteando pelas ruas do estaleiro.
Seguiu-se a escola de formação, a divisão de armamento, depois o refeitório, a electricidade, a galvanoplastia. Virámos para as traseiras da divisão de mecânica, onde sobressaiam as grandes oficinas das máquinas e da caldeiraria de tubos.
Depois virámos para o lado direito, passando pela contabilidade, sala de desenho, informática, aproximávamo-nos do edifício da administração.
Por onde passámos, chamámos os nossos camaradas para a luta. Tratava-se da luta das nossas
vidas, pela vida do nosso Arsenal. Todos perceberam isso e se envolveram num dos mais belos
movimentos da história da luta da classe trabalhadora.
Éramos cerca de um milhar de trabalhadores em fúria, por nos ter sido dito “não contamos consigo”, por nos ter sido imposto um acordo cessável a trinta dias sem justa causa, tendo como alternativa a precariedade da mobilidade especial.
A certeza de um futuro incerto. Mas que forma de reconhecer e premiar aqueles que desde sempre souberam garantir a operacionalidade dos navios da Marinha de Guerra Portuguesa!
Ocorria-nos um sentimento de perda irreparável, por isso nada mais tínhamos a perder. E o
movimento crescia, crescia! A exaltação também. A nossa absoluta convicção na justeza do protesto aliou-se ao desespero e à raiva há muito tempo contida, gerando um fenómeno imparável, imprevisível, incontrolável.
Em plena base militar, o poder estava nas ruas, na luta dos trabalhadores civis do Arsenal do Alfeite!
Chegámos ao edifício da administração e deu-se o inesperado.
Muitas dezenas de trabalhadores em fúria irromperam ruidosamente pela porta lateral do edifício, invadindo o seu interior. Da rua conseguia-se ouvir a correria nos corredores, o gritar de palavras de ordem, o estilhaçar de vidros pela trepidação à passagem agitada dos invasores.
O ambiente era surreal, assustador, mas ao mesmo tempo belo e pleno de simbolismo.
Concentrámo-nos diante da entrada principal da administração, por onde saíram os que tinham invadido o edifício, já acompanhados pelo pessoal que ali trabalhava.
O nosso objectivo era manifestar de forma bem vincada o repúdio pela situação e rejeitar o assinar de qualquer novo acordo ou contrato, uma vez que já tínhamos assinado um quando fomos admitidos no Arsenal do Alfeite. Acima de tudo, que suspendessem o processo de extinção do Arsenal e garantissem o posto de trabalho a todos os arsenalistas.
Cerca de um milhar de trabalhadores gritava em uníssono “não assinamos”, “trabalho com direitos sim, desemprego não” ou “a luta continua”. Não sairíamos dali enquanto a situação não fosse resolvida!
Reparei na chegada do Administrador do Arsenal do Alfeite, vindo do almoço, entrando em
passo apressado pela porta lateral do edifício.
Alguns minutos depois enfrentou a multidão, deu a cara, como bom exemplo da velha guarda, embora tenha sido vaiado pela grande maioria dos que ali estavam.
Os membros da comissão de trabalhadores e da comissão sindical, que entretanto tentavam refrear um pouco os ânimos sem grande sucesso, facultaram-lhe um megafone para que mais facilmente pudesse ser ouvido por todos. Demasiado acalorado, tirou a gravata e procurou fazer-se ouvir perante o burburinho que ali estava instalado :
- Um momento, um momento.
O pessoal acalmou-se um bocado. O Administrador prosseguiu:
- Eu não vim para o Arsenal do Alfeite há dois dias! Nem há dois meses! Nem há dois anos! Eu conheço o Arsenal do Alfeite desde mil novecentos e setenta e nove! Portanto, eu sei muito bem o que é o Arsenal do Alfeite – fez uma breve pausa, depois prosseguiu:
- Neste momento, quem é o Administrador do Arsenal do Alfeite sou eu. Eu tenho acesso ao
Secretário de Estado. Eu tenho acesso ao chefe da Marinha. Relativamente a esta questão que vocês estão a pôr... eu comprometo-me a ir tratar do assunto, em ir falar com a administração da nova empresa, em ir falar com o Secretário de Estado, no sentido de ver se as coisas podem ser tratadas de outra maneira – concluiu.
Ouviram-se mais aplausos do que vaias, as suas palavras caíram bem entre grande parte dos
trabalhadores. Porém, apesar de conhecer o Arsenal do Alfeite há trinta anos, a sua visão do
estaleiro chocou várias vezes com aspectos da cultura e da identidade arsenalista, e nem todos se tinham esquecido de que ele sempre se manifestou a favor da passagem do Arsenal do Alfeite a sociedade anónima, admitindo a possibilidade de se reduzir pessoal.
Outro episódio houve em que, num plenário convocado por si, a maioria dos presentes riu à gargalhada quando afirmou que uma das coisas que o Arsenal do Alfeite mais necessitava era de aumentar o número de engenheiros.
Sentindo a sua classe ofendida, mal terminou o plenário enviou uma mensagem de solidariedade a todos os licenciados, expressando-lhes o seu apoio contra o que apelidou de "basismo empedernido”, referindo-se claramente a quem se riu da sua afirmação.
Muito boa gente com responsabilidades nunca deu ou nunca quis dar real importância aos executantes, aos seus saberes e conhecimentos adquiridos, à sua invulgar capacidade de resolução de problemas em oficina e a bordo.
Ao longo dos setenta anos de história do Arsenal do Alfeite, foi esse o segredo e a chave para o bem sucedido cumprimento da missão que foi confiada ao Arsenal. Porque é nas oficinas e a
bordo que se fazem as coisas.
Foi nos seus anos como Administrador do Arsenal do Alfeite que se iniciou, operou e concluiu o processo de transformação do organismo público Arsenal do Alfeite em sociedade anónima, mas talvez o processo não tenha decorrido conforme tinha idealizado, talvez tivesse sido até enganado, só ele sabe.
Certo é que, naquela tarde bem quente de Julho, ele parecia não estar contra nós. Porém, a sua intervenção nem sequer beliscou o fervor descontente da multidão.
Ninguém arredou pé. Estávamos todos juntos e determinados como nunca se tinha visto, volta e meia gritando bem alto:
- Não assinamos!
Numa posição privilegiada no andar superior do edifício da direcção técnica, paralelo ao da
administração, alguns chefes de divisão assistiam divertidos ao protesto e, segundo alguns
testemunhos, tiravam fotografias e filmavam.
Corria pelo Arsenal que lhes haviam prometido carros de empresa, cartões de abastecimento gratuito de combustível e outros incentivos, para que a futura administração já os tivesse na mão.
Apesar dos boatos serem uma característica arsenalista, na verdade eles falavam e agiam como se já estivessem a trabalhar para a nova empresa, pressionando incrivelmente as pessoas no sentido de estas assinarem pela futura Arsenal SA.
Outros sentiram-se com um poder aparentemente ilimitado e demonstraram o pior que há nos seres humanos quando acontecem situações semelhantes.
Eram também estas razões que alimentavam o sentimento de revolta de todos nós, e naquela tarde esse sentimento atingiu uma magnitude tremenda, como tremendo era o asco perante aqueles que nos estavam a fazer mal ou a gozar com a nossa dignidade.
Percebendo isso, e perante o olhar ferido de raiva e a atenção de cada vez mais pessoal apontando-lhes o indicador, eles apressaram-se em cerrar as cortinas, apagar as luzes e zarpar dali para fora.
Foi melhor assim, para eles e para nós.
Subitamente, vindo do refeitório em direcção aos portões do estaleiro, um carro escuro de gama alta foi travado pela barreira humana que ocupava totalmente a rua. A maioria reconheceu o condutor como sendo um antigo administrador do Arsenal do Alfeite... a reacção foi colectiva e automática:
- Não passa!
E não passou. Mais tarde surgiram outros carros parecidos, sempre transportando velhas figuras conhecidas dos arsenalistas, todas elas do topo da hierarquia do estaleiro.
Coincidência das coincidências, nesse dia tinha havido um almoço especial, muito pouco divulgado, um banquete em que terão participado alguns antigos, actuais e futuros directores e administradores do Arsenal.
Algumas viaturas ficaram cerca de duas horas bloqueadas pelo protesto, outras apenas alguns
minutos, mas não passaram! Não entravam nem saíam carros! Quem quisesse, era livre de sair ou entrar, mas pelo seu próprio pé.
A nossa posição estava bem vincada e era unânime. Não sairíamos dali enquanto não tivéssemos garantias de que a situação iria mudar. O ambiente nunca deixou de ser tenso, mas
tornou-se estável.
Uns procuraram uma sombra para se abrigarem do Sol, outros sentaram-se nos vários espaços relvados diante do edifício da administração, mas a maioria estava de pé, bloqueando a passagem dos carros, manifestando o seu desagrado, conversando uns com os outros, trocando ideias, formando correntes de opinião.
O Administrador andava de um lado para o outro, desdobrando-se em esforços para deixarmos sair os carros, dizia que aquelas pessoas nada tinham a ver com a situação.
Bem, se virmos bem, muitos dos que tiveram grandes responsabilidades no Arsenal do Alfeite acabaram por ter a sua quota parte de culpa pela situação a que o estaleiro chegou...
Houve um carro que quase conseguiu sair, tendo sido travado mesmo junto aos portões por
um grupo de pessoal que se apercebeu a tempo. Um colega soldador ainda levou um toque nos
joelhos, quem viu garante que podia ter sido evitado, o ambiente aqueceu novamente...
O condutor manteve-se calmo, imperturbável, segundos depois pediu desculpa ao rapaz e o episódio acabou ali.
Quando as pessoas se esforçam para chegar a um entendimento digno, as coisas costumam correr bem. Foi o que nunca aconteceu no processo de transformação do Arsenal do Alfeite, pois os órgãos representativos dos trabalhadores do Arsenal nunca foram ouvidos durante a fase de estudo e decisão do processo.
O Administrador bem tentava que desmobilizássemos, mas não tinha qualquer controlo sobre
as pessoas. Nem ele nem os nossos órgãos representativos, visivelmente preocupados com a
situação.
A hora de saída aproximava-se e tínhamos de tomar decisões. Diante da entrada principal do
edifício da administração, no meio do espaço relvado, havia uma espécie de lago artificial, delimitado por um pequeno muro com cerca de meio metro de altura.
Esse muro serviu de palanque sempre que os órgãos representativos tinham algo para nos dizer, como era o caso. Exceptuando o pessoal que barrava solidamente a passagem de viaturas nos portões do estaleiro, todos fomos ouvir as novidades, para que depois pudéssemos tomar decisões.
O que nunca tinha acontecido em meses fora conseguido numa tarde memorável.
A comunicação social já sabia e noticiava o sucedido, apesar de não estar autorizada a entrar na Base para cobrir este tipo de situações. O Ministério da Defesa prontificou-se em receber os nossos representantes com urgência. A administração da futura Arsenal SA. aceitou reunir-se na manhã seguinte com a comissão de trabalhadores.
A luta começara a surtir efeitos.
Sabendo das novidades, decidimos desmobilizar no estaleiro e concentrarmo-nos no exterior,
junto aos portões do Laranjeiro, onde nos esperavam inúmeros órgãos de comunicação social.
Os carros puderam finalmente sair do Arsenal com normalidade. Decidimos também esperar pela reunião da manhã seguinte e, mediante a nossa análise ao resultado dessa reunião, determinaríamos qual o seguimento a dar ao movimento imparável que tínhamos iniciado.
Nos dias que se seguiram, e perante a firmeza da nossa luta, apoiada e saudada vivamente pelas duas maiores forças políticas portuguesas de esquerda, sob a vigilância atenta de grande parte da comunicação social, multiplicaram-se as reuniões com o Ministério da Defesa e com a administração da futura SA, as cedências aconteciam em todos os dias, surgiram várias versões da minuta do acordo, cada vez mais brandas e menos restritivas, com múltiplas supressões e alterações de cláusulas, apesar da continuidade daquela cláusula maldita que permitia que nos empurrassem para a mobilidade, agora a noventa dias.
Nada disto teria acontecido sem a grande jornada de luta iniciada de forma espontânea pelos
trabalhadores do Arsenal do Alfeite naquela saudosa e escaldante terça-feira, que permitiu colocar os representantes dos trabalhadores a negociar, quer com o Ministério da Defesa, quer com a administração da futura Arsenal SA.
Em catorze de Julho de mil setecentos e oitenta e nove, em Paris, heróis revolucionários
tomaram a Bastilha e escreveram uma das mais importantes páginas da história da Humanidade.
Exactamente duzentos e vinte anos depois, os trabalhadores do Arsenal do Alfeite, através da força e determinação da sua luta, provaram que, mesmo numa fase histórica de clara perda de direitos, é possível fazer ceder o monstro capitalista nas suas intenções desumanas de transformar o trabalhador cada vez mais num escravo remunerado.
Por isso, agora e sempre, e tal como deve acontecer na defesa da Liberdade e da Democracia, a luta dos trabalhadores continua, tem que continuar, todos os dias, todas as horas, em todos os momentos, em todos os lugares, na procura de um mundo socialmente mais justo e humanamente equilibrado.
Fim
José Soares, arsenalista, 7 de Agosto de 2009.