sábado, fevereiro 10, 2007

A posição dos Comunistas face ao problema do aborto ou resposta à plataforma Não obrigada sobre a utilização do Avante! na sua campanha pelo não

Resolvi responder a um mail que me enviaram com a reprodução de um editorial do Avante! de 1937, que está no blog da plataforma Não obrigada no categoria "Razões do Não".

A.Transcrição do texto do Avante! de Novembro de 1937:

Editorial

Resposta da Direcção

PORQUE É PROIBIDO O ABORTO NA URRS?

Damos imediata resposta a esta pergunta, formulada por algumas operárias do Barreiro. O aborto é um acto inteiramente anormal e perigoso, que tem roubado não poucas vidas e tem feito murchar não poucas juventudes. O aborto é um mal terrível. Mas, na sociedade capitalista, o aborto é um mal necessário, inevitável, benfazejo até. Na sociedade capitalista um filho significa, para os trabalhadores, mais uma fonte de privações, de tristezas e de ameaças. Quem tem filhos — diz-se — tem cadilhos. Pode-se imaginar algo mais doloroso que uma família de operários obrigados a sustentar, dos seus miseráveis salários, 5 ou 6 filhos? É a fome, o raquitismo, a tuberculose, a tristeza da vida, vivida em promiscuidade. E que futuro espera essas crianças? Serem uns desgraçados… como dizem as nossas mulheres. Por isso a mulher do [?] capitalista é obrigada a sacrificar o doce sentimento da maternidade , é obrigada a recorrer, tantas vezes com o coração sangrando, ao aborto. Por isso, a proibição do aborto, na sociedade capitalista, é uma hipocrisia e uma brutalidade. Na URSS, a situação é tão diferente como é diferente a noite do dia. Na URSS não há desemprego, não há miséria; há abundância de produtos. Tanto a mulher como o homem recebem salários que satisfazem as necessidades. A mulher grávida tem 4 meses de férias durante o período da gravidez, com os salários pagos. Há maternidades, creches, jardins de infância e escolas por toda a parte. O Governo soviético dá prémios que vão até 5 mil rublos para as mães que tenham mais de 5 filhos, etc. Ser mamã é uma das maiores aspirações das jovens soviéticas. ?E onde há uma esposa que não quisesse ser mamã sabendo que o mundo floria para acolher o seu menino? Sabendo que o seu filho não seria um desgraçado mas um cidadão livre da grande República do Socialismo? A criança, na URSS, deixou de ser um motivo de preocupações, para se tornar numa fonte luminosa de alegria e de felicidade. O aborto perdeu portanto a sua única justificação; tornou-se desnecessário. Por isso, o Governo Soviético resolveu propor ao povo trabalhador, a abolição da liberdade de praticar o aborto — liberdade essa concedida a título provisório, nos primeiros tempos da República Soviética quando esta gemia sob o peso da fome e da peste, ocasionadas pela guerra e pela contra revolução capitalista. Depois de discutirem amplamente a lei proposta pelo Governo Soviético, as mulheres e todo o povo trabalhador aprovaram essa lei que correspondia inteiramente às condições de existência livre e feliz que gozam os que trabalham na grande Pátria do Socialismo triunfante.

B. A minha resposta:

Em primeiro lugar tento descortinar qual a razão que leva essa plataforma a utilizar o que é dito neste Avante!, como forma de fazer campanha pelo não. Não percebo... E não percebo pois a posição expressa no texto, face ao problema do Aborto, é muito simples:

Numa sociedade em que:

1 - É baixa a condição de vida da maioria das pessoas, em que milhões vivem em pobreza declarada (2 milhões em Portugal actualmente vivem no limiar da pobreza extrema)

2 - Impera o desemprego e o emprego precário e sem direitos, fazendo de quem é obrigado a vender a sua força de trabalho para poder sobreviver (na maioria dos casos em troca de salários baixos), uma massa de explorados no seu trabalho e socialmente desprotegidos, por via da desresponsabilização do Estado Capitalista no que diz respeito à sua obrigação de providenciar ao povo saúde, educação, segurança social entre outros serviços públicos essenciais ao bem-estar.

Numa sociedade com estas características existem muitos e graves problemas. Um deles é o facto de muitas mulheres terem necessidade de recorrer à interrupção de uma gravidez que não desejam ou que, desejando, não têm possibilidades de levar até ao fim e por isso tomam essa dolorosa decisão, que mais dolorosa se torna quando quando há uma lei que diz que elas são criminosas, estando sujeitas a julgamentos em tribunal e à real possibilidade de prisão.

Mas não é a lei criminalizadora que faz com que as mulheres que decidem interromper uma gravidez não o façam. Pelo contrário. As das classes altas fazem-no no estrangeiro em perfeitas condições de higiene e segurança. As outras, as que têm um salário que mal dá para comer, ou as desempregadas, ou as jovens que nem idade têm para trabalhar e que não tiveram a sorte de sair ao mundo numa familia rica, essas são lançadas no mercado negro do aborto clandestino. Sem higiene, sem os instrumentos, sem acompanhamento médico, muitas vezes sem sequer qualquer companhia de um amigo ou familiar por perto.

Assim, se o objectivo era dizer "Ah e tal, afinal os comunistas eram contra o aborto e até na URSS ele foi proibido!" eu digo sim, os comunistas portugueses de 1937 eram contra o aborto, assim como os de hoje são. O que os comunistas de 1937 tinham, como os de hoje têm, era a consciência de que esse é um mal que existe e que, sob pena de lançar na clandestinidade milhares de mulheres - criando um mercado clandestino muito lucrativo por um lado, um grave problema de saúde pública por outro e ainda uma segregação medieval das mulheres por outro - tem que se adaptar o Direito, a Lei à realidade existente. E a realidade tem que ser transformada no sentido da elevação do bem-estar e das condições materiais de vida das populações em todos os sentidos.

1 - Com emprego estável e com direitos

2 - Com uma educação democrática, pública e universal organizada no sentido de, de verdade, preparar os jovens não para o dito "mercado de trabalho", mas para a vida em sociedade, dando-lhes as condições para o seu desenvolvimento individual enquanto seres-humanos livres de agir e pensar por si

3 - Com um sistema público e gratuito de saúde que, de facto, esteja em consonância com as necessidades das populações

4 - Com um sistema de Segurança Social que promova a protecção real dos mais carenciados e assegure pensões dignas a quem já não trabalhe

5 - Com uma sociedade que não se baseie no lucro de alguns e na ruína de muitos, mas sim no Ser-Humano e nas suas aspirações individuais que resultam da sua vida em sociedade. Onde não reine a mentalidade da competição feroz para alcançar objectivos, mas que estes o sejam através da cooperação e da solidariedade entre os indivíduos e da paz e internacionalismo entre os povos.

Quanto à URSS o aborto foi despenalizado em 1920, três anos após a Revolução Socialista, precisamente porque se reconheceu que a proibição não acabava com ele, em virtude de as causas estruturais do mesmo ainda não terem sido derrubadas.

Em 1936 consideraram-se ultrapassadas essas causas estruturais através da elevação geral das condições de vida de populações que agora tinham um elevado nível de emprego, acesso à saúde, à educação, uma legislação laboral mais avançada e progressista, de clara defesa do trabalhador e dos seus direitos, do que alguma vez tivemos em Portugal, onde, na prática, apenas nos aproximámos durante os Governos de Vasco Gonçalves e que tem vindo a ser destruído por todos os governos constitucionais do pós-25 de Abril.

Citando o texto: "A mulher grávida tem 4 meses de férias durante o período da gravidez, com os salários pagos. Há maternidades, creches, jardins-de-infância e escolas por toda a parte. O Governo soviético dá prémios que vão até 5 mil rublos para as mães que tenham mais de 5 filhos, etc."

E considerando ultrapassadas ou pelo menos tendo essas causas estruturais (que radicavam na essência do Capitalismo) uma importância já diminuta, a URSS volta a penalizar o aborto, segundo sei de uma forma flexível que tentava sempre ter em consideração a dignidade da mulher.

Mas independentemente do que aconteceu na URSS, os comunistas portugueses de 1937, como os de hoje, souberam identificar as causas estruturais do aborto que, repete-se, radicam na essência do sistema capitalista, e sabem que a penalização da mulher que se vê forçada a abortar clandestinamente não é a solução perante a realidade de então e de hoje.

Concluímos, portanto, que não é por causa da posição dos comunistas sobre o tema, pois essa, seja em 1937 ou em 2007, foi e mantém-se a mesma, que o Não obrigada foi buscar este texto do Avante! de 1937 e chamar-lhe "razões para o não", como o fazem no seu blog. E como os defensores do aborto clandestino, onde se inclui o Não obrigada, são e sempre foram contra a posição dos comunistas, então não pode ser por aí que se desvenda o mistério.

A única razão plausível que encontro é a linguagem utilizada pelos camaradas dos anos 30 para descrever a sua opinião sobre o aborto. Não sobre a mulher que aborta, mas sobre o aborto em si mesmo. Citando do texto: "O aborto é um acto inteiramente anormal e perigoso, que tem roubado não poucas vidas e tem feito murchar não poucas juventudes. O aborto é um mal terrível."

Ironicamente, estas são palavras tiradas a papel químico de alguns dos que nesta campanha referendária defendem o não. Ou seja, daqueles que defendem o aborto clandestino totalmente liberalizado. Donde se conclui que a linguagem do Não obrigada tem pelo menos 70 anos.

Só que o resto do texto também está lá e quem o ler com atenção e tiver em conta o ano em que for escrito, conseguirá concluir o mesmo que acima foi dito: O aborto é um mal, mas na realidade social do presente, a sua criminalização atira (nunca é demais repetir) milhares de mulheres portuguesas para o aborto clandestino com graves custos para a sua saúde e para o país devido a movimentar milhões numa economia paralela não controlada pelo Estado.

Pelo que se deve acabar com este flagelo nacional dando condições para que cada mulher, até às 10 semanas de gravidez possa, devidamente acompanhada por profissionais de saúde decidir em plena consciência se interrompe, ou não, a gravidez. Se o decidir fazer não terá que sentir em cima o peso da marginalização que a actual lei lhe impõe chamando-lhe criminosa e ameaçando com julgamentos humilhantes e com pena de prisão.

Supondo que nem todos os visitantes desta página do site do Não obrigada são anti-comunistas primários e sabem pensar para além do que querem impor aos outros, eu digo que esta foi uma boa ajuda ao esclarecimento do que está em causa neste referendo e que se visto com seriedade poderá levar a uma mudança do não para o sim em muito boa gente.

1 comentário:

naycotin disse...

inteiramente de acordo com o raciocinio e devo salientar o brilhantismo da coerencia na sua exposição. Admito que uma das razões para a "postagem" deste artigo do avante no blog do não obrigado, possa estar na convicção (mais real para uns, mais hipocrita para outros) de que será necessário combater as causas que levam ao aborto. O que ficou esquecido pela falta de raciocinio de quem o "postou" é deveras interessante. Primeiro, a necessidade que a URSS sentiu de despenalizar a IVG de forma a acabar com o aborto clandestino, e segundo, o caminho necessário para acabar com essas tais causas do aborto: uma sociedade socialista. Ora penso que algumas pessoas do não obrigado não estarão inteiramente de acordo com esse caminho (não imagino o bagão felix a sair agora em defesa de uma sociedade sem classes, ou do estado social universal e solidário). Ou seja, parece-me, tal como disseste, que este texto do avante de 1937 serve bem como um argumento pelo sim, podendo apenas servir como argumento pelo não se for apresentado sem reflexão e na esperança de que quem o lei não reflita. Parece-me contudo que não é necessário termos em conta o ano em que foi escrito, pois apesar de ter setenta anos, parece-me bastante actual (excepto lógicamente o tempo verbal atribuido à URSS, que como sabemos deixou de existir)